GERAL

Professora relata em livro traumas sofridos há 60 anos durante a ditatura militar

Gelci Quevedo Agne (acima, na extrema direita) viu o pai ser preso em abril de 1964 e decidiu contar tudo em um livro (Foto Divulgação/Arquivo Pessoal)

 

 

O pai aparava a barba no banheiro enquanto a filha 'saracotiava' ao redor, querendo brincar. O irmão mais velho já se juntava com os meninos da redondeza e a irmã mais nova não entendia as brincadeiras. Restava à garota de apenas 6 anos intimar o pai para se divertir. De repente, ouviram batidas na porta. Mal o patriarca atendeu, os visitantes entraram abruptamente na casa simples localizada no bairro Floresta. 

 

Era a época sombria da ditadura e os militares procuravam por ele. Sem explicações, começaram a vasculhar a casa e acabaram por levar o pai com eles. A garota avistou da janela o pai sendo colocado dentro de um veículo militar e levado de casa sem que ninguém soubesse para onde. 

 

O relato é de uma mulher que teve a vida marcada para sempre pela ditadura militar. Hoje professora aposentada, Gelci Quevedo Agne jamais esqueceu do que ela - a garota de apenas seis anos, a mãe, a vó e os irmãos viveram depois daquele dia em que presenciou a prisão do pai. Foram muitas consequências. 

 

Tanto tempo depois, ela decidiu que deveria externar tudo em um livro. A obra será lançada em breve e os relatos de Gelci já estão com a editora. "A ideia surgiu por uma demanda interna. A gente viveu muitos conflitos a partir do ocorrido no Golpe Militar. Isto ficou muito entranhado no nosso modo de ser. Eu cresci com isso, com o desejo de superação", conta a professora, relatando que a história real do que aconteceu com o país em 1964 já adulta. "Me formei em 1999, com 41 anos, em pedagogia. Foi na faculdade o que de fato conheci o que se passou com o Brasil. Até então, eu sabia o que a gente (a família) tinha vivido. Me aproximei da história do meu pai, e redimi um pouco por não ter dado mais importância a história dele até então. Por volta de 2009 e 2010, tive problema de saúde e fiquei afastada da escola. Neste período tive que ficar em repouso, mas precisava ocupar a cabeça, então comecei a reunir material e fazer entrevistas com pessoas que foram presas com meu pai e líderes da época como o Padre Gheno e o ex-prefeito Ernesto Keller", relata Gelsi, que acabou por arquivar o que já havia produzido. 

 

No entanto, a cada 31 de março, as lembranças retornaram e com a aposentadoria em fevereiro de 2023 decidiu que era hora de dar andamento ao projeto. "Eu precisava fazer algo com tudo aquilo. Perdi meu pai em 2020, veio a pandemia que só agutizou o sofrimento, as dificuldades, com a vivência de situações semelhantes de vigilância constante, de temor pela vida. Esta postura de ter que se fechar em casa, cuidar com o 'inimigo', revivi tudo outra vez. Tive covid antes das vacinas, foi bem sério, perdemos vários amigos, acho que a tensão, a vigilância, como era no período da ditadura, só fortaleceu a ideia de dar um grito de indignação, contando nossa história para que a ditadura nunca mais aconteça", cita ela.

 

Vários foram os momentos que em Gelci se emocionou durante a entrevista ao Correspondente. "Mexe muito comigo. O que a gente vivenciou foi muito traumático, mas com a aposentadoria me organizei. É um projeto meu. Meus irmãos encaram de maneira diferente. Cada um tem uma maneira de se posicionar, mas tem a entrevista deles no livro. A minha irmã era bem pequena, tinha apenas 3 aninhos e meu irmão tinha 8 anos. Minha mãe, por muitas vezes em que eu tentava falar questionava o que porquê disso. Mas eu tinha a necessidade de expressar, dar meu grito de liberdade, de indignação", conta. 

 

A prisão e os desdobramentos 

O pai de Gelci, Delfino de Siqueira Quevedo, era metalúrgico, trabalhava em uma grande empresa em Carazinho e atuava como líder sindical, com forte atuação em defesa dos direitos dos trabalhadores. "Era também muito brizolista. Um dos argumentos foi de que ele seria um organizador dos chamados 'Grupos de 11'. Carazinho era um dos ligares que mais teve adesão a este programa puxado por Brizola. Eu lembro que nossa casa era centro de encontro das pessoas. O bairro Floresta (onde ela mora até hoje) era um dos redutos. A alegação era de que eram comunistas, subversivos e a prisão deles foi justificada por isso, simplesmente porque pensavam diferente, defendiam a democracia e não queriam que os militares tomassem conta. Infelizmente não foi suficiente. Aqui no bairro várias pessoas foram levadas, vizinhos nossos, primos do meu pai... Alguns não se recuperaram (do trauma)", relata. 

 

De acordo com Gelci, o pai voltou da prisão cerca de 60 dias depois, com sequelas físicas e bastante traumatizado. "Entrou em depressão, sofreu maus tratos, tortura. Passou um período em que se reprimiu bastante, mas depois conseguiu se reerguer, voltou para a política, se candidatou para vereadora, mas não se elegeu, mas assumiu como suplente. Para se ter uma ideia, e isto também é um dos objetivos, é que muitas pessoas desconhecem a história e até negam. Dizem que não aconteceu, que não ouve revanchismo. Isso foi tão forte que no ano seguinte a prisão, inauguraram aqui uma escola e colocaram o nome de Escola 31 de março. Quando meu pai voltou para a política, fez o projeto para mudar o nome e ela passou a ser Alfredo Scherer", recorda. 

 

"É difícil não lembrar (do momento da prisão). Eu faço esse relato no livro porque lembro como fosse agora. Uma menina na minha idade apaixonada pelo pai. Aquele dia ele chegou mais cedo do trabalho e eu queria alguém para brincar. Ele parecia choroso, mas desconversou. Quando eles chegaram, ele foi atender. Entraram porta a dentro, empurrando dele. Nossa casa era pequena e foram direto para o quarto dos meus pais. Vieram o colchão, reviraram o armario. Eu não sabia o que estava acontecendo. Reviraram tudo. Chingavam. Não acharam o que estavam procurando e levaram meu pai. Já era abril de 1964. Fui para a janela espiar. Jogaram meu pai no carro e o levaram, Ficamos a Deus dará, sem saber o que acontecia, para onde tinham o levado, se ele voltaria", disse. 

 

Gelci recorda da mãe e da avó chorando. A última lembrança dela daquele dia é estar escondida embaixo da cama. Qaundo Delfino retornou, contou o que passou à família. De Carazinho foram levados a Passo Fundo e retornara a Carazinho. "Retornaram em um caminhão caçamba e descarregados como porcos. Teve problemas de coluna e fraturou a mão. Depois teve sérios problemas para trabalhar. Lembro que na noite que ele voltou, havia uma luz na cozinha e eu ouvi a voz dele", enumera a professora. 

 

O período sem o pai foi bastante difícil para a família. "Ficou a mãe, a vó doente, três crianças pequenas. Meu avô morava do lado da nossa casa, era carroceiro. Era meu pai que trazia o sustento para a casa. E tinhamos medo porque diziam eu que os militares voltariam. E voltaram várias vezes, para revirar a casa. Recebemos ajuda do meu avô, dos irmãos da mãe, depois de uma mulher de um amigo do meu pai, que traziam alimentos para nós. Depois de uns 30 dias mais ou menos, chegou um bilhetinho, um pedaço de papel de pão, escrito com lápis de carpinteiro dizendo que ele estava bem, mas não sabia quando voltaria. Para mim era um tempo sem fim. Não tinhamos mais visitas. Minha mãe era costureira, e como tudo era proibido, não tinha mais reuniões sociais e ninguém mais mandava costurar. Ela lavou roupa para fora, fez doce, pasteis a note para no outro dia meu irmão e meu tio iam vender no centro. Meu mano já estudava e apontavam ele na escola, 'filho do comunista', e minha mãe tinha que ir na escola, tentar amenizar. Ele acabou evadindo da escola, não concluiu no tempo ideial. Então foram marcas profundas", salienta. 

A família Quevedo, com Gelci no centro (Foto Arquivo Pessoal)

 

Apesar de tudo, conforme Gelci, o pai seguiu sonhando que era possível mudar o mundo com a política e que a democracia iria se efetivar. Concorreu três vezes para vereador, não se elegeu, mas foi suplente em uma das legilslaturas. Acabou se desanimando, se deprimiu e teve problemas com alcoolismo. Fez tratamento, se recuperou e deu a volta por cima. "Aí voltou a ser aquele homem que foi quando jovem. Tinha uma liderança nata. Fazia movimentos, promoções, palestras. Era o Seu Quevedo. Viveu ainda 22 anos, mas foi uma luta este nosso enfrentamento", orgulha-se a professora. 

 

O lançamento do livro de Gelsi será no ano em que o Golpe Militar completa 60 anos. Ela projeta que ele saia ainda no primeiro semestre de 2024. 

Data: 12/02/2024 - 10:44

Fonte: Mara Steffens

COMPARTILHE